sábado, 12 de março de 2011

Carta aberta da Atea a José Serra

Excepcionalmente, publicamos um texto que não tem alvo específico. É inútil
enviar email ao candidato, mas muitos jornais podem se interessar pelo tema.
Sugerimos que reenviem para seu órgão de imprensa favorito e circulem nos
ambientes virtuais que conhecem.

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Prezado Serra

o uso de temas religiosos na campanha eleitoral tem causado preocupação em
muitos setores da sociedade, e os ateus não são exceção. Em primeiro lugar, a
religiosidade de quase todos os candidatos, inclusive o senhor, tem sido
utilizada como troféu, pois é exibida ostensivamente, repetida, reafirmada em
palavras, gestos e até em material de campanha. É perfeitamente legítimo
identificar-se com posições de um ou outro grupo de eleitores: constitui a
própria essência do jogo eleitoral. Mas a posição religiosa de cada um é
subjetiva, carregada de emotividade e metafísica, e frequentemente descolada da
ortodoxia do grupo. As pesquisas deixam claro, por exemplo, que existe um
exército de católicos recorrendo a contracepção, aborto e divórcio.

Se adesão religiosa não é sinal de concordância doutrinária, ela nada nos diz
sobre conteúdo programático, e portanto não tem lugar nas campanhas eleitorais.
A exibição de fé dos candidatos ajuda o clientelismo político-religioso e
constitui, na melhor das hipóteses, um apelo à emoção do eleitor, vazio de
conteúdo. Na pior, é uma exploração da religiosidade popular com fins pessoais e
eleitoreiros, que apela e reforça o que há de pior na população: o preconceito
contra ateus.

Assim como a orientação sexual, o posiciionamento religioso do candidato é
matéria íntima que em nada influi na capacidade de liderar, governar ou
legislar. Explorar eleitoralmente esse dado, seja qual for, é concordar com a
posição de que é lícito discriminar cidadãos com base nesse critério, o que é
não apenas imoral e antidemocrático como inconstitucional.

Serra, sua campanha está utilizando a frase "Jesus é a verdade e a justiça". É
claro que seu direito de opinião é livre. Mas de que maneira essa crença o
qualifica como candidato, ou como governante? De que maneira, em uma democracia
laica, ela pode incluenciar a escolha de voto? Em cada três pessoas vivas hoje,
duas não concordam com essa frase. O único efeito que uma tática desse tipo pode
ter é o de angariar votos completamente desvinculados de propostas de campanha,
o que já é ruim, e às custas da perda de eleitores de todas as posições não
cristãs, o que é péssimo.

Lembre-se, Serra, que em um Estado laico o poder e as verdades não emanam de
qualquer religião ou ideia religiosa, mas de conceitos abertos ao debate. Como
governante, devemos esperar que procure a verdade através da fé e da religião,
ao invés do debate e das evidências científicas? Sua busca por justiça será
entremeada pela busca por Jesus? Em caso afirmativo, confirma-se a ideia de que
voltaremos a uma teocracia. Em caso negativo, trata-se de estelionato eleitoral.

Serra, o ser questionado sobre como lida com o fato de ser católico e depender,
também, de eleitores evangélicos, sua resposta foi "todas as doutrinas convergem
naquilo que é o essencial: que Jesus é a verdade e a justiça". Caro Serra, e
como ficam muçulmanos, judeus, hinduístas, candomblecistas, xamanistas,
budistas, wiccas, pagãos, deístas, humanistas, taoístas, confucionistas,
agnósticos, ateus e todos os bilhões de pessoas em milhares de grupos que não
são cristãos? Para você, não existe nenhuma pessoa que não seja religiosa, e
nenhuma religião que não seja cristã? Serra, nós existimos. No Brasil, 7% das
pessoas não tem religião, 2% são ateus. No mundo, duas em cada três pessoas não
são cristãs - uma ampla maioria que Serra você ignora, imaginando que o mundo
inteiro é como você.

Serra, o mundo tem muitas, muitas pessoas, e a imensa parte não partilha as suas
crenças. A democracia se propõe exatamemente a acomodar a convvência na
pluralidade. A diversidade religiosa atual é enorme. Mas aparentemente, é só
para os iguais que você pretende governar, já que ignora até a existência dos
diferentes. Mas nós estamos aqui, e não vamos sumir mesmo que façam de conta
que não existimos.

Lamentavelmente, em julho o candidato a vice Índio da Costa já prenunciava a
posição da chapa ao ligar sua principal adversária ao ateísmo. Entender que
existe ganho nisso é apostar no preconceito contra os ateus e, pior,
instrumentalizá-lo em ganho próprio. Tudo poderia ser ficado como uma mera
provocação de péssimo gosto, mas durante o debate realizado na tevê Canção Nova,
em agosto, nossos piores medos se concretizaram.

Foi-lhe perguntado se o presidente precisa acreditar em deus e se acreditar em
deus tem algo a ver com o modo de governar o país. Era o momento para dar uma
aula de cidadania, mas sua resposta foi "acho bom que o presidente da República
acredite em deus. Eu creio que os valores, a espiritualidade que faltam tanto no
mundo de
hoje têm causado problemas para a humanidade e mesmo para o nosso país, até
certo ponto."

Em outras palavras, sua posição é a de que o ateísmo não apenas é uma coisa ruim
e que tem causado problemas para a humanidade e para o Brasil, mas que não é bom
que um ateu seja presidente. Mais uma vez, a história se repete como farsa.
Vinte e cinco anos atrás, o preconceito contra o ateísmo deu um golpe mortal na
campanha de seu colega e decano do partido, Fernando Henrique Cardoso. Hoje, os
papeis se inverteram e é o próprio candidato que se apressa em afirmar com todas
as letras sua rejeição à descrença, postando-se ao lado daqueles que, na época,
deixaram de votar em Fernando Henrique por causa disso.

Mas sua declaração foi além: "a religião e a crença em deus permite a uma
sociedade desenvolver melhor os seus valores, uma ética de comportamento
individual, tanto que quando às vezes se fala 'nesse lugar vale tudo, deus
morreu', a ideia de deus morreu, a ideia de que deus não existe, a ideia de que
deus está ausente, que as pessoas nele não crêem, porque ele está presente
mediante a nossa crença, pra cada um, isso faz muito mal para a sociedade. Fará
mal também para o Brasil. Eu acredito que a religião e a crença em deus nos
aproxima dos valores, nos aproxima da solidariedade."

Traduzindo: o ateísmo atrapalha o desenvolvimento de valores e de ética na
sociedade, e por isso lhe fazem mal. O ateísmo nos afasta dos valores e da
solidariedade. Não há outra palavra para esse tipo de opinião, Serra:
preconceito. Associar imoralidade a um grupo qualquer de seres humanos é uma
prática vergonhosa que já foi e continua sendo aplicada por todos aqueles que
têm preconceito contra negros, judeus, homossexuais ou qualquer outro grupo,
inclusive os ateus. Sim, nós sabemos que é isso que diz a bíblia. Mas de um
candidato a um cargo máximo esperávamos uma demonstração de grandeza, de
urbanidade, ou ao menos que fosse, tolerância. O que vimos foi um espetáculo de
chauvinismo e sectarismo. O que sera pior: que tenha dito isso para agradar os
preconceituosos e lucrar também com o seu voto, ou que creia nessas palavras com
sinceridade?

Serra, os ateus são cerca de 2% da população brasileira, um contingente maior do
que a maior parte das denominações religiosas coretejadas por sua campanha.
Seremos tão desprezíveis que nem nosso voto lhe interessa?

Serra, você está completamente, profundamente, inescapavelmente enganado. Todos
os dados disponíveis desmentem suas concepções. Nós, ateus, também temos
direitos constitucionalmente garantidos, e não apenas merecemos como exigimos o
respeito de todos os demais. Há ateus canalhas, não resta dúvida. E também há
canalhas entre os cristãos, os alpinistas, os keyneseanos e os carecas. Assim
como há indivíduos boníssimos tanto entre ateus como entre enxadristas, budistas
e monetaristas. E não consta sequer que as taxas de criminalidade dos teístas
sejam melhores do que entre os ateus. Imaginar que existe algum grupo humano
inerentemente pior que todos os demais é de uma pequenez atroz, incompatível com
o exercício de qualquer cargo público de um Estado democrático.

Serra, você nos deve desculpas. Desculpas sinceras e completas. Nós não achamos
que você seja mau por ser cristão. Mas você está errado, e seu erro nos avilta e
nos ofende, aprofundando o preconceito já existente em muitos milhões de
brasileiros, e que pode ficar ainda pior caso seja eleito. Sabemos que cristãos
também podem reconhecer seus erros e pedir perdão. Por que não fazeis a nós como
gostaria que os outros vos fizessem?

São Paulo, 16-10-2010

Associação Brasileira de Ateus e Agnósticos

http://atea.org.br/index.php?view=article&catid=923%3Adia-a-dia&id=208%3Acarta-a\
berta-a-jose-serra

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